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Design thinking sob perspectiva humanística

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pattern-design-5A definição de design – bem sabem todos os que atuam na área ou pesquisam sobre ela – é objeto de constantes disputas. Antigamente, as disputas costumavam girar sempre em torno do objeto do design: o designer pensa mais na forma ou na função? Em objetos e imagens produzidos em série ou únicos? Atua só na concepção ou também na produção?  Etc etc. Faz algum tempo, porém, que tem ganhado destaque uma definição do design baseada mais nas especificidades do processo de pensamento a ele relacionado do que nas especificidades de seu objeto de atuação. Nessa perspectiva, a pedra fundamental do design é o design thinking, ou seja, a forma de pensar que caracteriza e define o design. É a partir da consolidação dessa definição que campos inteiros do design – como o design de serviços – podem ganhar corpo.

Embora eu acredite que uma multiplicidade de definições pode enriquecer o pensamento sobre o design, é verdade que algumas definições são claramente mais interessantes, adequadas e relevantes que outras. A definição baseada no design thinking parece-me uma das mais frutíferas (juntamente com outras que podem ser vistas como complementares a esta, tais como as definições relacionadas aos cinco eixos propostos em nossas Considerações preliminares para uma filosofia do design). Quando se parte da definição baseada no design thinking, os debates teóricos passam a centrar-se no modo de caracterizar essa forma de pensar que define o design.

Um dos modos mais disseminados de caracterizar o design thinking serve-se da categoria peirceana de abdução. Peirce — um filósofo americano dedicado especialmente a pensar questões lógicas — cunhou o termo abdução para fazer referência ao processo de pensamento que leva um cientista a elaborar uma hipótese para explicar certos fatos. Como explica Fann, em seu livro intitulado A teoria da abdução de Peirce, “a teoria peirceana da abdução está interessada no pensamento que parte dos dados e segue na direção de hipóteses” [1]. É uma categoria, portanto, que surge no âmbito da filosofia da ciência e da lógica. Um de seus pontos principais é mostrar que o pensamento científico envolve uma terceira forma de inferência além da deduçao e da indução.

Como se sabe, dedução é o modo de inferência que parte do geral para o específico. Por exemplo, se todo mamífero é animal, posso deduzir que o elefante é um animal. Esse é o único processo inferencial que nos leva a uma conclusão logicamente necessária, ou seja, necessariamente válida. Por isso, costumamos sobrepor “lógico” a “dedutivo”. Se entendermos lógica como o ramo da filosofia que estuda a validade ou “correção” dos enunciados, porém, podemos considerar que a indução e a abdução também possuem formas específicas de validade — não uma correção de caráter necessário, sem dúvida, mas um tipo específico de adequação.

A indução é o processo inferencial que vai do específico para o geral, por repetição. Assim, se todo dia vejo o sol nascer, infiro por indução que o sol nasce todos os dias. Como está claro, esta não é uma inferência logicamente necessária, apenas adequada à observação. Normalmente, considera-se que o pensamento científico baseia-se nesses dois tipos de inferência somente. Peirce observa, porém, que dedução e indução não explicam como um pesquisador pode olhar dados e formular uma hipótese. Quando ele cria uma hipótese a ser futuramente testada, ele não está pensando nem dedutivamente nem indutivamente, mas também não está dando um chute qualquer. Ele está fazendo certo tipo de inferência criativa. É esse tipo de inferência que Peirce classifica como abdutiva.

Para citar um trecho do artigo A lógica da abdução, dedução e indução, de Gerhard Minnameier [2]: “O último Peirce entende abdução como ‘o processo de formar uma hipótese explanatória. Ela é a única operação lógica que introduz uma ideia nova’. ‘Explanação’ nesse contexto significa desenvolver uma teoria para acomodar fatos em busca de explicação em sentido geral. Ela pode ser uma explicação narrativa de alguns fatos desnorteadores, como um caso criminal ou uma teoria científica [...]“.

newtonO interessante da categoria de abdução, então, é que ela destaca a dimensão criativa do pensamento científico. Muitas cenas e histórias famosas relacionadas à ciência estão diretamente ligadas a essa dimensão criativa, como a cena da maçã caindo na cabeça de Newton. O tipo de pensamento que teria feito Newton partir da queda da maça e chegar à hipótese de uma lei universal da gravidade não pode ser explicado através da dedução ou da indução. Ele pressupõe um tipo peculiar de inferência criativa que levou inicialmente à hipótese de uma lei, a qual só posteriormente foi “comprovada” através de experimentos empíricos (indutivos) e deduções.

Assim, para quem busca pensar o design thinking tomando como base o pensamento científico, a categoria peirceana de abdução ou pensamento abdutivo é, com efeito, particularmente interessante. Ela aproxima o pensamento característico do design de uma dimensão específica do pensamento científico: essa dimensão experimental que permite a criação de hipóteses. Como o próprio Peirce observa em um de seus textos sobre o tema [3], quando se trata do pensamento abdutivo, as inferências são sempre aceitas somente como interrogação e, por isso mesmo, podem continuar a ser feitas incessantemente, diferentemente do que ocorre com a indução e, especialmente, com a dedução.

Em um plano mais geral, contudo, vale questionar a tendência de se pensar o design a partir da ciência — tendência esta que sem dúvida orientou a tentativa de se refletir sobre o design thinking a partir da categoria de abdução. A ciência, encarada em senso estrito, é apenas uma forma de conhecimento específica e não há porque acreditar que ela seria a forma privilegiada de acesso a uma suposta verdade, e muito menos que as demais formas de pensamento deveriam se pautar ou se legitimar pela forma científica. A idolatria da ciência, encarada aqui como tecnociência, parece-me uma das piores facetas da cultura contemporânea.

Algumas vertentes do pensamento humanístico bastante fecundas, como a psicanálise, já cometeram anteriormente o erro de querer angariar para si um estatuto de “cientificidade” que apenas as engessaram e enfraqueceram. A disciplina do design thinking não deveria cometer o mesmo erro. Mais do que a ciência ou uma filosofia da ciência centrada na lógica, outros ramos e vertentes da filosofia podem oferecer suportes interessantes para compreeendermos o pensamento característicos do design. Tenho em mente especialmente as filosofias que buscam formas de pensamento extra-racionais de acesso a um suposto Real e as filosofias que negam a existência de um Real essencial por trás da realidade das aparências e, assim, encaram todo pensamento como essencialmente criativo.

Dentre muitas outras perspectivas relevantes, gostaria de destacar, aqui, a filosofia de Henri Bergson. A análise que o filósofo faz do esforço criativo, e que apresentei no post Bergson e o esforço criativo, por exemplo, oferece conceitos — como os de pensamento dinâmico e pensamento imagético — que nos permitem compreender o processo de pensamento característico do design de modo mais complexo e frutífero do que a compreensão possibilitada pela insistência na categoria de abdução. Na verdade, parece-me que, na busca de melhor compreender o tipo de pensamento classificado por Peirce como abdutivo, é a tratamentos filosóficos como o bergsoniano que teríamos que recorrer.

Finalizo este post, então, defendendo uma abordagem humanística no estudo do design thinking. Trata-se de uma abordagem que não procura justificar o design thinking pela ciência, e sim encará-lo como outra forma de pensamento igualmente legítima, mas que é de natureza diversa e que possui critérios completamente diferentes de validade. Assim encarado, o design thinking pode aparecer como um dos polos de resistência à lógica da eficácia atualmente vigente que procura objetificar todo o existente e transformar a verdade tecnocientífica em um novo tipo de Deus ciumento.

Notas
[1] FANN, K. Peirce’s theory of abduction. The Hague: Martinus Nijhoff, 1970, p. 5.
[2] MINNAMEIER, G. The logicality of Abduction, deduction and induction. In: Bergman, M., Paavola, S., Pietarinen, A.-V., & Rydenfelt, H. (Eds.) (2010). Ideas in Action: Proceedings of the Applying Peirce Conference (pp. 239–251). Nordic Studies in Pragmatism 1. Helsinki: Nordic Pragmatism Network, p. 240.
[3] PEIRCE, C. Abduction and induction. In: BUCHLER, J. (Org.). Philosophical writings of Peirce. Mineola: Dover, 1955, pp.  150-156.


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